Faz sentido que o Dia Internacional do Livro  seja comemorado dia 23,
 pelo mundo afora. A data, estabelecida em  caráter definitivo pela 
Unesco em 1996, homenageia dois gigantes máximos da  literatura 
ocidental. O 23 de abril seria, por uma lenda repetida  universalmente, o
 dia em que morreram, no mesmo ano, o espanhol Miguel de  Cervantes 
(1547 – 1616), o inventor do romance moderno com Dom Quixote,  e o inglês William Shakespeare (1564 – 1616), o inventor do humano, como o chama  Harold Bloom.
Trata-se de uma das mais instigantes mitologias  do universo 
literário, uma lenda que dota o terreno profano da literatura de uma  
data mágica ao estilo das Vidas de Santos (que antes eram muito mais 
comuns em  livro). Dois dos pilares da literatura mundial viveram de 
fato na mesma época,  mas a predestinação histórica que os teria feito 
partir ao mesmo tempo é  ficção.
Para começar, da biografia de Shakespeare, autor  de obras 
onipresentes em praticamente todo o mundo, sabe-se muito pouco. Embora  
tenha deixado quase 1 milhão de palavras de texto, apenas 14 delas são  
comprovadamente de seu próprio punho: o nome assinado seis vezes e as 
palavras “por mim” em seu testamento, como conta um de seus biógrafos, 
Bill Bryson, em Shakespeare: a Vida É um Palco. Há pouca informação mesmo sobre o dia  de seu falecimento – têm-se registros de seus funerais, mas não a data  exata do óbito.
Mesmo que tenha sido 23 de abril a data da morte  de Shakespeare, não
 teria sido no mesmo 23 de abril de Cervantes pelo simples  motivo de 
que, na época, a Espanha, onde Cervantes vivia, havia adotado, como  bom
 país católico, o calendário imposto pelo papa Gregório em 1582. E  
Shakespeare vivia na Inglaterra protestante, frequentemente hostilizada 
pelo  reino espanhol a serviço do Vaticano, e que ainda marcava o tempo 
pelo  Calendário Juliano. A Inglaterra só adotaria o Calendário 
Gregoriano em 1751.  Shakespeare, portanto, teria morrido no dia 3 de 
maio – 10 dias após o  espanhol.
Mas quem vai dizer que a história não é boa?  Sendo assim, para que 
insistir tanto na picuinha das datas? Para lembrar,  talvez, que a 
literatura é em última instância uma construção paradoxalmente  
individual (na mente e no coração de cada leitor) e coletiva (na 
transmissão de  leituras e cânones, de intepretações e até mesmo 
mitologias literárias com as  quais os leitores se comprazem).
Fonte: Site Livros e poesias 
